log #8
eu nunca contei essa história para ninguém
como toda manhã, meus pais me deixaram na casa dos meus avós e foram trabalhar. sentei no sofá de courino cinza e ia ligar a TV, mas notei uma caixa de sapato nova, da Olympikus, colocada sobre a mesa de centro. como uma das coisas que eu mais fazia na casa dos meus avós era bisbilhotar, logo a abri: vazia.
ouvi os passos característicos da minha avó, que quase se arrastavam. fechei com pressa a caixa e voltei ao sofá. haveria problema se ela me pegasse bisbilhotando? não sei, talvez não. provavelmente não. mas havia muita graça em fazer as coisas na surdina.
ela entrou pelo umbral e então vi o motivo da caixa. minha avó usava um tênis novo! era cinza claro, do tipo slip-on. imediatamente fiquei obcecado. era o item mais idoso que alguém poderia ter inventado, é verdade, mas o simples fato de que era dela fazia dele o item mais bonito que eu já vira.
sabia que eu havia chegado num ponto que meus pés, grandes demais para a minha idade, eram do tamanho dos pés de minha avó, pequenos demais para os seus mais de setenta anos.
passei a manhã maquinando alguma situação que arruinasse meus próprios sapatos, com a esperança de que ela me oferece os dela. já pensou? eu, tendo a honra de usar os sapatos da minha vó?
perto da hora da aula, um pouco antes do almoço, meti a tesoura neles.
quando ela me chamou para almoçar, sentei amuado à mesa e ela me perguntou o que tinha acontecido. expliquei que havia tropeçado, meus pés haviam enganchado no armário do corredor e meus sapatos tinham rasgado.
ela pediu pra ver, então saí em busca dos meus tênis. mostrei os tecidos com cortes retos e ela examinou, examinou e examinou.
“puxa, que pena. você pode usar algum do seu avô, quer?”
“os do vô ficam muito grandes, vó.”
“ah, é verdade!” ela disse, já tirando os tênis novos e me entregando. um sorriso enigmático estampava o seu rosto.
sentia meu corpo quase explodindo de alegria quando minhas mãos encostaram nos tênis dela. coloquei um e depois o outro. senti em volta de mim fios de luz dourada me rodeando, como se a Fada Madrinha é que tivesse proporcionado aquele momento, e não minha engenhosidade e a bondade de minha avó. aliás, o conforto era tanto e a precisão de encaixe era tamanha que só ali eu entendi: foi exatamente assim que o sapato da Cinderela entrou.
cheguei na escola me sentindo um príncipe, mas…
não contava com a crueldade das crianças. que erro o meu, já tão acostumado com ela.
na educação física – o pior momento da escola pra mim –, um menino olhou fixamente para os meus pés e berrou: “corre! corre! venham ver os tênis de vovó que ele tá usando!”
meus colegas caíram na gargalhada.
e eu? não se preocupem, sempre soube me defender. mostrei o dedo do meio para eles, dei as costas e sentei em um banco perto do bebedouro, esperando a advertência que viria (ela sempre vinha, vocês sabem: o sistema não é justo).
chorei de raiva. não de vergonha: isso eu não tive.
o problema era deles se não entendiam o privilégio de poder usar os tênis da avó.



Já pensou que calçar os sapatos dela, na alegoria possível, era menos sobre se aproximar dela e mais sobre se afastar de si mesmo? Ou seja, não para ser ela, mas para ser menos você, ou melhor, mais distante da ideia imposta de você. Você chorou de raiva porque aqueles meninos te devolveram para o lugar onde seu eu era forçado a estar, te tirando da nuvem que os sapatos de sua avó significaram naquele breve momento. Achei bonito e triste.
Amigo, que texto maravilhoso! Eu arfei quando tu meteu a tesoura nos sapatos. Amei!